quinta-feira, 21 de maio de 2009

Quem nasce na vila aprende mais cedo

Mart’nália cantou e eu me aproveitei da letra: “Modéstia à parte, quem nasce na vila aprende mais cedo”. É verdade...
Ressalvadas todas as sinalizações de porém, entretanto, contudo, todavia, etc. das carências e problemas multiangulares de morar na vila, leia-se periferia, lá é bem melhor. Foi bem melhor pra mim, ao menos. Claro que, agora, como já tenho um filho, levo pra casa os argumentos acadêmicos e jornalístico-empíricos e, assim sendo, não gostaria que ele crescesse em meio às dificuldades encontradas nesse espaço social, mas pra quem é piá é tri bom.
Crescer na vila é subjetivamente bom. Sim, subjetivamente. De difícil externalização e comunicação vocálica ou gráfica. As novas gerações, tributárias de docs de condomínios não viverão coisas como a sociabilidade criada no meio da rua de paralelepípedo (sem asfalto e sinaleira), não conhecerão a cultura do “brincar na terra”, de tirar o tampão de dedão porque chutou a pedra e não a bola (e também chamar de filho da p... aquele que riu na hora do chute), de ficar com coceira nas costas por causa da grama. Pois é, quem viveu, viveu e sabe do que eu to falando. Essa nostalgia dita muitas de minhas regras na minha vida social e profissional e por isso sou amante do senso comum. Os intelectuais o odeiam, mas não sabem do que falam. Muitos não comungaram de tais momentos, vejam vocês alguns:
Jogar bolita, hã? Que coisa boa quando da risca ia direto pro boco. Já podia “matar” o
outro no começo do jogo. Mas quando se jogava às “verda”, meu pai não deixava eu levar as “olhinho de gato”, eram muito bonitas pra perder pros outros (ah, me desculpem, mas não usarei notas de rodapé pra explicar esses termos, pois como já disse: quem viveu, viveu...). E a chimpa (ou ximpa, não sei, nunca vi essa palavra por escrito)? As partes internas das carteiras de cigarro valiam como dinheiro e lembro que as de caixinha eram mais caras, chamadas de “ourinho”. Jogar taco era no mínimo uma vez por semana, sempre tendo que tirar as latas de azeite da rua cada vez que vinham os carros, mas tudo bem...
Eu sei, eu sei. Os nossos pais na correria, na labuta do dia-a-dia pra gente poder frequentar a escola, não precisar trabalhar, o esforço pra nos dar aquele par de tênis novo a cada inverno. Todos nós lá. Vítimas da vergonhosa desigual distribuição de renda do país. Mas, no nosso universo infantil, orbitavam outras coisas:
“Márciooo, eu não acredito que tu jogou bola com o tênis de sair?” ou “Ah, tu quer te aparecer pras visita é?”, também “ó filho, a mãe te comprou esse abrigo bem quente, apeluciado por dentro”. Momentos de negociação: “Ah mãe, não vou tomar banho. Nem suei. Joguei no gol.” Quem nunca barganhou?
E quem nunca torceu pra achar a figurinha chave da bicicleta ou do vídeo game. Eu só ganhei um relógio de plástico. O álbum era de graça no armazém e muitas vezes se colava com cola de farinha. Não achava menor graça no ping pong Amazônia ou Pantanal, mas o “Bubblets” do Jaspion eu completei, e o gosto do chiclete era melhor também.
Os saquinhos de leite grudados nas garrafas de Clorofina não me chamavam muita atenção. Preferia o barulho da tampa da Doriana nos raios da bicicleta.
Mas o bom era o futebol. 3 dentro, 3 fora, com um pique pra ficar mais fácil. A droga era que muitas vezes no melhor do jogo, vinha minha mãe me chamar pra ir na padaria, ou jogar no bicho pra ela “ah, agora eu não vô” “peraí, vou chamá teu pai”. Eu ia.
Eu era rápido, brincá de pega-ajuda era comigo, sempre era o último ser pego. No 5 corta também me destacava, claro que fazia algumas panelinhas pra cortar sempre.
“Olha a Kombi, olha a Kombi, vai pega as garrafas!!” Três garrafas de vidro, valiam uma baita rapadura de Santo Antônio, isso só na Vila, os mauricinho do asfalto não tinham esse privilégio. Não mesmo. Tirar foto com o Papai Noel no areião, só nóis, a negadinha da vila.
Isso não é romantizar a periferia, longe disso. Mas vejam que em meio a tantos problemas, na minha cabeça ficou isso, esses detalhes. Convivi no meio da violência, mas sempre fiz limonada com esse limão. A gente sempre ressignificava tudo, da falta de grana à dor de um soco na cara. “Bah, arregou.” “Ah, não da minha mãe tu não fala”.
Quem acha que a piazada não sente a pressão, que não compreende as mazelas cotidianas? Entretanto, usávamos nossos dialetos pra conversar com o infortúnio. Já falei, defendo o senso comum. Tenho uma formação acadêmica que nunca conseguiu ser porta-voz da periferia, sempre a enquadrou num clichê de carência e alienação. Não é bem assim. Quem nasce na vila faz na “paleta” seu referencial teórico. Vê novela, mas debocha porque sabe como vai ser o último capítulo. Graças a vila, nunca escorreguei num pedantismo estéril e otário. Minha infância, de uma forma inexplicável, subjetivou meu presente, e não sei como, só sei que sim. Não sei se vou conseguir explicar pro Gabriel, meu lambari. Não sei se quero que ele more na vila, tenho uma preocupação de pai, é diferente. Priorizo a proteção dele, em meio a essa violência, mesmo perdendo muito de todo o resto, é irônico, é contraditório. A vila sofre, deveria ser diferente. Mas, ao mesmo tempo, ela é única, é mágica. Não adianta, quem nasce na vila aprende mais cedo.