quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Ficção

-Amor, vem cá, me deixa arrumar a gola. Isso, agora sim!! Fernando sorria um sorriso pronto de dentes reconstituídos com aparelhos ortodônticos. Era um homem-de-bem. Colecionava fotos de eventos sociais, familiares, religiosos. Passava toda quinta-feira no supermercado e levava pra casa a comida da semana. Dois filhos, algodão doce, pipoca, ingresso de cinema infantil, praia em janeiro, happy hour com amigos que falavam alto (gritavam) em piadas de gente cheia de si, de vida consumada e protocolada. Fernando fazia amor com sua esposa e ligava a tevê, no outro dia de manhã o celular tocava, despertava anunciando o intervalo que teria até o escritório, que implicava uma rotina de “nãos” em semáforos a equilibristas de laranja e sorrisos a estagiárias perfumadas em paradas de ônibus. Adriano vomitou de novo... O corpo espinhava, queimava... Mais 150 reais “Jogados fora”, que merda!!!!! A noite anterior fora um fracasso, estéril, pedante. Verborrágica. Uma meia dúzia de beijos e só. O resto foi compartilhado com uísque aguado, um uísque portador de uma possível guinada introspectiva num quixotesco e imaginativo depois-de-amanhã melhor. Na caixa de mensagem, um recado da filha. Seria oradora de sua formatura. Perdoava as ausências do pai descompassado. Na verdade gostava bastante dele. Menina inteligente, veterana de viagens com sua mãe (e o namorado dela). Adriano tinha sorte de ser gostado pela filha. Fernando fechou o cinto sobre a calça, denunciando uma sobra de barriga que por sua vez denunciava um sono de dez horas diárias e dietas de carboidrato e salada. Fechou o cinto depois de mais uma ejaculação paga com cartão de crédito a uma namorada de aluguel encontrada em locais específicos da internet. Fazia um sexo infiel, machista. Um sexo que seria narrado aos amigos que legitimariam um adultério viril de um homem-de-bem. Adriano não fez nada no último mês. Sem convite algum: aniversário, batizado, jantares familiares... Fernando foi pra casa. Completo. Homem. Real. Convencional. Socialmente aceito. Adriano vivia um dia de cada vez. Ria, filosofava, conjecturava. Procurava ser interessante, financiado por limitados recursos intelectuais. Definitivamente não era um homem-de-bem. Publicitários não o produziriam em marketing de folders de banco. Amava mulheres das mais variadas idades e ao mesmo tempo não amava nenhuma. Pagava o preço de seu nomadismo afetivo com sistemáticos e justificados sumiços de suas amantes, pois conseguia, muitas vezes, deixar-lhes sensações ruins como uma tatuagem mal feita. Era o preço. O preço de uma fisiológica e ideológica sinceridade, pois objetivava flutuar num metafísico plano acima dos ditames sociais. Pagava o preço. E doía-lhe, assim como a dor cansada do material de trabalho sobrecarregando seu corpo de pé num coletivo urbano cheio. Caso Fernando fosse descoberto de suas satisfações sexuais extraconjugais, evidentemente seria perdoado, talvez não pela esposa, com a qual o desempenho de marido era espaçado e ruim, mas pela convenção, pela moralidade coletiva parideira de fernandos photoshopados que pagam com arrependimentos judaico-cristãos os erros cometidos. Mais do que perdoado, nosso herói seria salvo pela sociedade. Mas a honestidade (idiossincrática) de Adriano não. Essa não!!! Mais do que seus atos e opiniões, é seu papel, sua representação social que não encontra espaço no mundo das gentes-de-bem. Sua rotina é insuportável aos capítulos da epopeia contemporânea das famílias, dos docs de condomínios, das risadas em churrascos. Adriano jamais caberá nisso tudo. Não nasceu para ser um bom genro, um bom vizinho... Fernando é o que há!!! O bom homem: falho, mas arrependido, carregando nas costas tudo que aprendeu, e a sociedade lhe é generosa... Adriano vomitou de novo... E não tem mais crédito no telefone pra avisar o atraso no trabalho. -Lindo, lindo!!! Nando, cuidado com essas piranhas te olhando na festa. Tu é meu!!! Vai Fernando, o mundo é todo teu!!!!